Liberando Tubulão

3 06 2013

Quem dirige pelas rodovias do Brasil inevitavelmente atravessa um sem-fim de pontes e viadutos. E pode não ter prestado atenção, mas muitas delas estão sendo ampliadas e/ou reformadas para atender à maior demanda de veículos e carga que passa por elas hoje do que costumava passar há algumas décadas atrás, quando foram construídas, além de várias delas estarem sendo alargadas – quem tomava a Rod. Presidente Dutra para São José dos Campos, Campos do Jordão ou Rio de Janeiro deve se lembrar que várias delas não possuíam acostamento, por exemplo.

Não apenas essa onda de reformas, mas também a construção de novas pontes e viadutos, exigem que os pilares de sustentação das pontes reformadas ou construídas sejam apoiados em material resistente, isto é, que não sofra deformações (recalques). E é aí que entra uma das soluções de engenharia mais perigosas para os trabalhadores: o tubulão.

Obra-manhã

Trabalhadores de uma das obras da Rod. Presidente Dutra preparam-se para começar uma jornada de trabalho.

Um tubulão é um poço circular de alguns metros de profundidade. De preferência, suas paredes são revestidas com anéis de concreto que evitam que o material desmorone para o interior da escavação. O problema é que a metodologia pressupõe escavação a seco, e é muito comum que durante a execução seja atingido o nível freático antes de ser atingida a profundidade projetada. A solução, então, é injetar ar comprimido no poço, o que faz com que a água seja expelida pela pressão exercida pelo ar injetado (já brincaram de borbulhar o suco no interior de um copo assoprando um canudo? É a mesma ideia, o ar entra sob pressão e o canudo permanece preenchido por ar, mesmo imerso em líquido). Resulta, daí, o tubulão a ar comprimido.

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Mas como fazem os trabalhadores para escavar nessas condições? Simples, eles trabalham no interior do poço, num ambiente com ar comprimido. Os ambientes externo e interno são interligados por uma câmara de compressão (a campânula): para entrar, a pressão nessa câmara parte da pressão atmosférica igual ao lado externo.

Campânulas

Campânulas, prontas para serem instaladas sobre os poços.

A câmara é então vedada hermeticamente, e é injetado ar comprimido em seu interior. A pressão no interior da campânula sobe até igualar à pressão no interior do poço. Abre-se então uma escotilha de acesso que permite o acesso ao ambiente de escavação.

Campânula

Exemplo de campânula para compressão de ar. Foto: Lúcio Barcelos.

Quem lembra de química do colegial (alguém?) deve se lembrar que, se temos um volume constante – o volume da campânula, que já é minúsculo, não muda – e a pressão aumenta, então a temperatura aumenta proporcionalmente ao incremento de pressão. Resultado: o interior da campânula pode virar um verdadeiro inferno, com temperaturas próximas dos 50ºC.

A maioria dos projetos de fundação solicita que a base do tubulão seja inspecionada por geólogo ou engenheiro geotécnico quando for atingida a profundidade final: é preciso que se tenha uma garantia que o material do apoio seja resistente o suficiente para comportar o pilar e todo o peso que vai passar sobre ele, sem que haja deformações. É aí que contactam geólogos (e alguns engenheiros razoavelmente capacitados) para entrarem neste ambiente tão agradável.

Campânula-interior

O interior de uma campânula, já com a temperatura lá em cima.

Não fiquem preocupados com a temperatura, afinal em algumas obras os operários jogam água na estrutura metálica para refrescar.

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Parece brincadeira, né?

Pois é, a temperatura não é um grande problema, o problema é todo o resto:

– A pressão extra pode variar de 0 a mais de 2,5 atmosferas. Trabalhar tempo demais nessas condições ou não seguir os procedimentos corretos de pressurização/despressurização podem causar problemas de saúde. É comum os trabalhadores apresentarem “friagem”, isto é, dores fortes no corpo provocadas por acúmulo de pressão. Não entendo muito bem dos detalhes (inclusive porque nunca peguei a tal “friagem”), mas é causa de afastamento temporário de um operário da obra.

– O sistema de subida/descida, além de todo o maquinário no interior da campânula e do poço, são extremamente arcaicos. Só para se ter uma ideia, a subida/descida é realizada através de um miniguindaste que puxa um cabo de aço e, na extremidade deste cabo, vai um balde, usado para retirar o material escavado e transportar o material de trabalho para o fundo do poço. E é nesse balde que a pessoa se apóia para ir até o fundo do buraco!

Balde1

Eu, me preparando para subir com o pé apoiado no balde.

Balde subindo

Eu, subindo no meio de transporte mais seguro que já inventaram.

Quando se chega (literalmente) no fundo do poço, o objetivo é verificar se o terreno está duro ou não. Isso é feito em teoria com um aparelho denominado pressiômetro, mas na grande maioria das vezes o trabalho é realizado com ajuda de um pedaço de vergalhão de aço, que o geólogo pressiona contra o solo e verifica, no feeling, se o terreno é bom ou não. Também é verificada a verticalidade do poço: se ele estiver fora de prumo, isto é, inclinado, pode haver problemas de instabilidade no apoio. As recomendações mais comuns são para avançar mais com a escavação caso não seja verificado material de qualidade, e reforço na estrutura de metal que será colocada no interior do poço quando ele for concretado.

Verificar a base de um tubulão não é a tarefa mais ingrata – já estamos pingando de suor, estamos sob pressões de quase 3 atmosferas, estamos sujos e ainda temos que fazer um esforço danado pra entender os operários fazendo piada. Como padrão, a câmara de trabalho tem cerca de 1,5m a 1,80m de terreno natural exposto, sem concretagem. Muitas vezes o material observado nesta pequena janela não é observável na superfície por falta de afloramentos.

Enfim, não é o trabalho mais agradável de se fazer, além de ser arriscado. Mas rende boas histórias. E rende, às vezes, uma boa geologia de fundo de poço.

Tubulão

Esquema de um tubulão a ar comprimido. Fonte: http://construcaociviltips.blogspot.com.br/

Tubulão

Tubulões. Foto: Lucio Barcelos

Agradecimentos ao meu ex-colega de trabalho, Lucio Barcelos, que até hoje sofre indo liberar tubulões a ar comprimido, e que forneceu algumas das fotos deste post.